sábado, 14 de julho de 2012

Quando o amor quebra o silêncio

Determinação de pais de filhas surdas melhora vida de centenas Família faz do diagnóstico de surdez de duas filhas impulso para transformar a vida não só das garotas, hoje prestes a concluir a universidade, mas de centenas de outros jovens. Nos idos dos anos 1980, uma descoberta que tinha tudo para ser preocupante mudaria por completo a vida do jovem casal Maria Helenice e Milton Gontijo e, indiretamente, as de centenas de outros jovens dependentes de cuidados especiais. Era 1987 e a família morava em Arinos, no Noroeste de Minas, a 650 quilômetros de Belo Horizonte. Maria Helenice estava grávida do caçula, Milton Junior. A filha mais velha, Raiane, tinha 2 anos e Rejane, 7 meses quando os pais descobriram que os ouvidos das meninas eram incapazes de perceber as vozes do mundo. Mas não as do coração. Daí veio a força para, 22 anos depois, comemorarem a vitória de ver os três filhos na faculdade e mais de 200 outros jovens amparados pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Arinos, fundada pelo casal.Esse é apenas o resumo da ópera da família Gontijo, um concerto embalado pelas notas do silêncio e composto pela solidariedade e a fé. Amadurecido pelo desafio da surdez, agora esse quinteto pode se orgulhar de levar uma vida normal,com sutis adaptações. Mensagens de e-mail e celular são arranjos da sinfonia. As mãos ganharam habilidades de um regente, que por meio de sinais, comanda uma orquestra. É exatamente por meio delas que, apesar da ausência do som, a família pode dizer com todas as letras a palavra superação. E haja motivos para isso.Falta um ano para Raiane, de 24, que tem 15% da audição, tornar-se fisioterapeuta. Com 5% da capacidade auditiva, Rejane, de 22, também está prestes a concluir o curso de moda e, atualmente, dedica-se ao estágio na grife de sapatos Paula Bahia. Ouvinte, Milton Junior, de 21, é o único longe da família, que em 2006 se mudou para BH em busca de mais oportunidades para os filhos. Em Ouro Preto, na Região Central, o caçula cursa engenharia de controle e automação. "Sempre falei que todos iam fazer faculdade. A família tem que acreditar no potencial dos filhos", afirma Maria Helenice, de 53, que prefere ser chamada de Leninha e, atualmente, é articuladora institucional de saúde da Apae BH. BATALHA Apesar das conquistas, enfrentar a surdez das filhas não foi tarefa fácil. O diagnóstico de Raiane representou para Leninha um choque e, ao mesmo tempo, a certeza de que Rejane também carregava limitações semelhantes. Sem falar do medo de que a dificuldade afetasse também o neném que estava por vir, já que a suspeita é de tratar de característica hereditária. "Como minhas filhas não podem cantar, achava que também não podia. Choravam e eu chorava junto, porque não conseguia me comunicar com elas", conta a mãe. A primeira reação foi procurar, em BH, Brasília, São Paulo, Montes Claros e Bauru (SP), médicos que dessem diagnóstico contrário.A busca apenas confirmou o quadro, difícil de ser enfrentado numa cidade de 20 mil habitantes e sem estrutura para portadores de deficiência. "Diante dos desafios, há dois caminhos: ficar refém ou encarar, transformando a dor em amor, buscando conhecimentos, acreditando na capacidade de superação e na fé", resume Milton, de 50, gerente de Recursos Humanos. Atrás de tratamento e educação especializada, Leninha se mudou com os filhos para BH e, depois, para Unaí, município próximo a Arinos, onde Milton continuou morando. Antes disso, foram incontáveis viagens enfrentando estrada de terra para levar as meninas a consultas com fonoaudiólogos, médicos e psicólogos.Ao retornar à cidade, o desafio dos Gontijo já não era cuidar de Raiane e Rejane, mas de todos os portadores de deficiência. A tia das garotas, Lindaura, foi à capital federal aprender a Língua Brasileira de Sinais (Libras), instrumento fundamental para as sobrinhas e demais surdos se comunicarem. Em 1993, fundaram a Apae na cidade, instituição dirigida pelo casal por 15 anos e que hoje, com nova direção, presta assistência a 206 pessoas. “Aprendemos a olhar além de nós mesmos. Somos testemunhas do que diz São Francisco de Assis: ‘É dando que se recebe’. Se você abre seu coração ao próximo, a vida presenteia você”, diz Milton. PRESENTES Quer melhor recompensa do que o sorriso das filhas? Praticamente independentes, as jovens hoje se dedicam a realizar os sonhos. “Estou me sentindo muito feliz. Meus pais me estimularam a fazer a faculdade e me sinto muito bem desenhando no meu estágio. Tenho uma família unida, desde criança, quando a nossa comunicação ainda era mais difícil”, conta Rejane, por meio do intérprete e pedagogo Silvestre Ferreira, que a acompanha no estágio e auxilia as irmãs no aperfeiçoamento da linguagem de sinais.Com Raiane não é diferente. “Amo fisioterapia. Meu grande sonho é trabalhar num hospital com geriatria. Considero-me vitoriosa, pois superei muitos desafios na minha vida.” Uma receita de esforço, com tempero especial das mãos. “Minhas mãos falam e meus olhos são meus ouvidos”, define a jovem de estilo, a começar pelos olhos – um azul e outro castanho. “Meus desafios agora são me formar, conseguir trabalho e ser independente. Mas acredito que falta à sociedade atitude para aproximação”, afirma. “Você pode ter a legislação que for, mas pessoas precisam entender que não pode haver egoísmo nem discriminação”, defende Leninha. Uma vida agitada, mas que dispensa o barulho. Assim é a rotina da estudante de moda Rejane Gontijo, de 22 anos. O Estado de Minas acompanhou um dia da jovem, que empurrou os obstáculos da surdez para escanteio e tem se dado bem na profissão. Atualmente, ela se divide entre o penúltimo período de moda no Centro Universitário UNA e um cobiçado estágio na grife de sapatos Paula Bahia. Dedicada ao extremo, Rejane, que tem a audição comprometida em 95%, mostra que, quando há paixão, nem as barreiras do silêncio são empecilho para vencer.“Sempre ficava olhando e admirando roupas, bolsas e sapatos. Desde 2001, decidi que queria fazer o curso. Percebo que, por ser surda, tenho muita atenção visual e a moda está muito relacionada ao visual”, afirma Rejane. Na fábrica de sapatos, a jovem, junto com a estagiária Marcela Bahia, de 20, e sob a supervisão de Paula Bahia, desenha o vestido que as modelos usarão no desfile da grife no evento de moda Minas Trend Preview, nesta semana. “Fico impressionada com a determinação e a gentileza dela.Tento passar para a Rejane o que estamos fazendo e pensando Nem que precise de mímicas, de escrever”, conta a empresária O intérprete Silvestre Ferreira acompanha a estudante no estágio, facilitando o aprendizado e a comunicação com os profissionais. Como sua capacidade de ler lábios é restrita, é pelos sinais das mãos que Rejane consegue mergulhar no mundo do conhecimento. Um intérprete também a auxilia na faculdade, traduzindo, simultaneamente, o conteúdo da aula para a Língua Brasileira de Sinais (Libras). “A Rejane tem um grande destaque na área de criação. É uma pessoa muito dedicada e que está brilhando”, ressalta a coordenadora do curso de moda da UNA, Renata Lunkes. Atualmente, os alunos da graduação estão desenvolvendo projetos relacionados à moda inclusiva, criando peças especiais para pessoas com alguma deficiência. “No caso do surdo, podemos explorar a textura do tecido, o cheiro”, comenta Renata, destacando que a iniciativa culminará com um desfile em 2010. “E, se Deus quiser, a Rejane vai estar na passarela”, comenta: DESAFIOS Apesar dos esforços, a inclusão de surdos ainda esbarra em questões simples, como a presença de intérpretes na universidade, determinação da lei, e o vocabulário das áreas de conhecimento. Muitas vezes, a Libras não consegue acompanhar tamanho detalhamento técnico. A irmã de Rejane, Raiane, de 24, estudante de fisioterapia, também é surda e percorreu várias universidades até que encontrasse uma com intérprete. “Toda faculdade precisa ter inclusão. No caso dos surdos, é preciso haver um intérprete. Mesmo assim, sinto que a comunicação com meus colegas e o aprendizado de nomes científicos nos meus estudos ainda são obstáculos no dia a dia”, explica Raiane.

Casamento especial